Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Elohim verdadeiro, e a Yeshua o Messias, a quem enviaste. JOÃO 17:3
MARCIÃO: AS HERESIAS CONTINUAM
MARCIÃO: AS HERESIAS CONTINUAM
Após a rebelião de Inácio, a expansão do Cristianismo contou com outro nocivo ingrediente implementado por Marcião de Sínope (85 a 160 D.C), um influente bispo do Cristianismo primitivo.
Enquanto os netsarim (nazarenos) usavam o Tanach (Primeiras Escrituras) e os Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos), considerando todas as Escrituras como uma unidade e sem a existência de hierarquia de uma sobre a outra, Marcião foi o primeiro a inventar os termos “Velho Testamento” e “Novo Testamento”, expressões estas que não existem na Bíblia. Marcião cria na existência de dois deuses distintos, ensinando que o “Velho Testamento” revelou um deus mal, que seria o deus dos judeus; e no “Novo Testamento” se manifestou um deus bom. Em sua mente gnóstica, o deus de Jesus seria diferente do deus dos judeus. O pensador pagão preconizou um sistema dualista para explicar as “contradições” entre o “Velho” e o “Novo Testamento”. Para justificar a existência de dois deuses, Marcião interpretou as Escrituras de maneira totalmente incorreta.
Vejamos alguns exemplos:
1) Disse Marcião que o deus mal dos judeus ensinou “olho por olho”, enquanto o deus bom de Jesus ensinou o amor. Este conceito é errôneo, visto que “olho por olho” não significa literalmente arrancar o olho de uma pessoa, mas sim o dever de indenizar um dano causado a outrem em valor proporcional à ofensa. Ademais, no Tanach (Primeiras Escrituras/“Antigo Testamento”), o ETERNO ordenou o amor ao próximo: “amem seu vizinho como a si mesmos” e “amem-no como a si mesmos” (Vayikrá/Levítico 19:18 e 34). Logo, o amor de YHWH não surgiu com Yeshua. YHWH sempre foi amoroso.
2) Alegou Marcião que o deus do “Velho Testamento” incentivava o divórcio e o adultério, e o deus do “Novo Testamento” os proibiu. Outro equívoco de Marcião. Yeshua lecionou que o divórcio foi dado pela dureza dos corações humanos (Matityahu/Mateus 19:8), e a própria Torá diz que o homem se unirá à sua mulher (palavra no singular, ou seja, apenas uma mulher) e ambos serão uma só carne (Bereshit/Gênesis 2:24). Devarim/Deuteronômio igualmente afirma que não deveriam ser multiplicadas as esposas (Dt 17:17). Em suma, a Torá nunca estimulou o divórcio e sempre abominou o adultério.
3) Sustentou que o deus do “Velho Testamento” não era onisciente, porque perguntou para Adam (Adão): “onde você está?” (Gn 3:9). Esqueceu-se Marcião que YWHW é tão misericordioso que fez esta pergunta para possibilitar que Adam (Adão) e sua mulher se arrependessem de seus pecados, confessando-os.
4) O deus do “Velho Testamento”, prossegue Marcião, é um deus de vingança, crueldade e ódio; e o deus de Jesus é bondoso e amoroso. Não percebeu Marcião que YHWH não muda e sempre externou seu amor e sua justiça para com todos os homens. Em hebraico, a palavra “chessed” (graça) aparece mais de 240 vezes no Tanach (Primeiras Escrituras) e o próprio perdão liberado pelo ETERNO ao povo de Israel, após o episódio idólatra do bezerro de ouro, demonstra o seu grande amor. Por outro lado, no “Novo Testamento”, Hananyah (Ananias) e Shapirá (Safira) foram exterminados pelo ETERNO (At 5:1-11), o que demonstra que mesmo após Yeshua a justiça de YHWH continua a operar. Em suma, em todas as época da história o ETERNO agiu com justiça e com misericórdia, aplicando uma ou outra de acordo com sua infinita sabedoria.
5) Na visão do Marcionismo, Yeshua foi enviado pelo Deus Pai (o deus bom) para superar o deus mal. Este conceito é tão absurdo que dispensa maiores comentários.
6) Explicava Marcião que o deus do “Antigo Testamento” criou o mundo material para alastrar o mal, tornando-se a divindade dos judeus. Este deus perverso outorgou a Lei (Torá) com o objetivo de promover uma justiça legalista que punisse severamente os homens por seus pecados com sofrimento e morte. O deus de Jesus derrubou a Lei, olhando a humanidade com compaixão e piedade. Outra grande heresia de Marcião! Yeshua afirmou que não veio revogar a Torá/Lei (Mt 5:17) e Sha’ul considerou a Torá santa, justa e boa (Rm 7:12), chegando a dizer: “Segue-se então que abolimos a Torá (Lei) por meio da fé? De maneira nenhuma! Ao contrário, confirmamos a Torá” (Rm 3:31).
7) Para distinguir a obra do deus amoroso em relação ao deus cruel, Marcião dividiu as Escrituras em “Velho Testamento” e “Novo Testamento”. Ora, quem lê a Bíblia em hebraico sabe que não existe a palavra “testamento”. A bem da verdade, o profeta Yirmeyahu (Jeremias) usa a expressão “B’rit Chadashá”, que significa Aliança Renovada (ou “Nova Aliança”) – Jr 31:30-33 (versões cristãs: Jr:31:31-34). Com base nestes textos do profeta referido, deduz-se que Yeshua veio para escrever a Torá no coração de seus discípulos. Assim, o correto é usar a nomenclatura judaica: 1) Tanach (Primeiras Escrituras, isto é, aquelas anteriores a Yeshua) e 2) B’rit Chadashá (Aliança Renovada ou “Nova Aliança”) ou, como preferem alguns, Ketuvim Netsarim (Escritos dos Nazarenos), que são os escritos posteriores a Yeshua. Daí, Tanach e B’rit Chadashá (Ketuvim Netsarim) formam em conjunto o que conhecemos como Bíblia, inexistindo superioridade de um sobre o outro.
8) Seguindo a linha de Inácio de Antioquia, Marcião afirmou que o Cristianismo era distinto e oposto ao Judaísmo.
Marcião atraiu um grande número de seguidores e, após ser excomungado da Igreja de Roma, erigiu uma comunidade independente. A Igreja de Marcião se expandiu com extrema força, alcançando multidão de pessoas, valendo destacar que seu movimento perdurou por muitos séculos. Numerosos gentios se agarraram a Marcião, fugindo do “deus mal” dos judeus, o Criador dos céus e da terra para a crueldade. O ódio pelos israelitas, incluindo-se os nazarenos, ganhou um novo propulsor. Policarpo, que foi discípulo de Yochanan (João), chamou Marcião de “primogênito de Satanás”. Lamentavelmente, o Cristianismo adotou inúmeras heresias do bispo gnóstico.
Ademais, a teologia cristã lançou as sementes do Marcionismo e colheu heresias ainda maiores.
Até hoje o Cristianismo, em sua quase totalidade, ensina as teses antibíblicas iniciadas por Marcião:
a) “a Lei foi abolida por Cristo”;
b) “a Igreja substitui Israel nos planos de Deus”;
c) “existe uma separação entre ‘Velho’ e ‘Novo Testamento’”.
Milhares de pastores no mundo inteiro, discípulos indiretos do gnosticismo de Marcião, ensinam para os membros de suas Igrejas: “vocês não precisam cumprir isto ou aquilo, porque são mandamentos do ‘Velho Testamento’”. Estes mesmos pastores cobram os dízimos, instituídos pelo “Antigo Testamento”. Que perversão!!! Para lucrar com os dízimos, o “Velho Testamento” é válido, mas para cumprir a vontade do ETERNO, pregam os pastores: “o Velho Testamento está ultrapassado, anulado, abolido”.
A verdade precisa vir à tona: todas as Escrituras Sagradas (antes e depois de Yeshua) formam a Unificada e Eterna Palavra do vivo Elohim. Não existe “Velho” e “Novo Testamento”, mas sim Tanach (Primeiras Escrituras) e B’rit Chadashá (ou Ketuvim Netsarim), que são os escritos dos discípulos de Yeshua. A Palavra do ETERNO nunca fica “velha”, razão pela qual é impróprio o nome “Velho” ou “Antigo Testamento”. Tendo em vista todas as explicações bosquejadas, a partir de agora não usaremos mais as expressões pagãs criadas por Marcião, substituindo-as pelos nomes corretos: Tanach e B’rit Chadashá (ou Ketuvim Netsarim/Escritos Nazarenos).
No seio do Cristianismo, existe uma doutrina maligna que foi influenciada direta ou indiretamente pelo Marcionismo: a Teologia da Substituição.
Defende a Teologia da Substituição a tese de que no “Novo Testamento” os cristãos substituíram os israelitas nas promessas feitas pelo ETERNO. Afirma que os judeus negaram Yeshua e, por isso, foram rejeitados por YHWH, que elegeu a Igreja para ocupar o lugar que antes pertencia ao povo de Israel.
Esta teologia ensina: 1) que o “Novo Testamento” substituiu o “Velho Testamento”; 2) a Igreja substituiu Israel e 3) a graça substituiu a Lei; 4) o Cristianismo substituiu o Judaísmo.
Há diferentes modalidades da teologia da substituição, chamadas por R. Kendall Soulen de supersessionismo. Este pode ser: punitivo, econômico ou estrutural (The God of Israel and Christian Theology, Minneapolis,1996, Fortress).
1) Supersessionismo Punitivo. Proclama que os judeus rejeitaram Yeshua como Messias e, em decorrência, foram punidos pelo ETERNO, perdendo todas as promessas que lhe foram feitas no Tanach (Primeiras Escrituras). Alguns defensores deste supersessionismo: Hipólito de Roma, Orígenes de Alexandria e Martinho Lutero.
2) Supersessionismo Econômico (obs: não se refere a dinheiro, mas à função). Assevera que o povo de Israel foi substituído pela Igreja nos planos de YHWH. Em outras palavras, Israel foi escolhido pelo ETERNO apenas para trazer Yeshua ao mundo. Com a vinda do Messias, instituiu-se a Igreja e Israel perdeu a finalidade. Alguns defensores deste supersessionismo: Justino Mártir e Agostinho.
3) Supersessionismo Estrutural. Promove a marginalização do “Antigo Testamento” (AT) como norma para a vida cristã, isto é, não nega o AT, mas o desvaloriza, tornando-o inferior ao “Novo Testamento” (NT). O AT é válido, porém o que realmente importa é o NT. As regras do AT são vistas como de pouca relevância.
Além destes três tipos de supersessionismo apresentados por Kendall Soulen, o teólogo David Novak apresenta os conceitos de “supersessionismo fraco” e “supersessionismo forte” (Two Faiths, One Covenant?: Jewish and Christian Identity in the Presence of the Other: The Covenant in Rabbinic Thought, Rowman & Littlefield, 2004. Eis seus conceitos:
1) Supersessionismo fraco. A Nova Aliança, instituída pelo Novo Testamento, é entendida como uma adição à Aliança anterior (a religião dos judeus, ou seja, o Judaísmo). Assim, o ETERNO não revogou a Aliança com o povo de Israel, mas os gentios não precisam da Primeira Aliança, bastando se conectar com Yeshua. Este supersessionismo é chamado de “fraco” porque é sutil, mas mesmo assim possui um verniz antibíblico. Qual o erro desta teoria? O supersessionismo fraco leciona que o gentio somente precisa buscar a conexão com Yeshua, desligando-se da Torá (Primeira Aliança), o que contraria os próprios ensinos do Mashiach, uma vez que todos eles estavam fundamentados na Torá (Mt 5:17-19).
2) Supersessionismo forte. A Nova Aliança é uma substituição da Aliança Mosaica. Tanto o supersessionismo forte quanto o fraco estão errados. Biblicamente, a Aliança Renovada (“Nova Aliança”) é uma extensão (no sentido de prorrogação) da Aliança Mosaica.
Outra maligna herança do Marcionismo foi o Antinomismo, expressão que literalmente significa “contra a Lei”. De acordo com Merriam-Webster Dictionary, o antinomianismo é definido como “uma declaração de que, sob a dispensação do evangelho da graça, a lei moral é de nenhum uso ou obrigação, porque somente a fé é necessária para a salvação”. Em outras palavras, as regras morais contidas na Torá (Lei) são irrelevantes para a salvação. Será verdade? Será que alguém dito crente pode adorar Satanás e mesmo assim estar salvo? Será que um crente que passa a vida toda em adultério, sem arrepender-se, herdará a vida eterna? Será que um pastor que rouba os dízimos irá para o paraíso? É claro que não. Logo, percebe-se que as regras morais contidas na Torá são importantes. Yeshua advertiu que quem o ama iria obedecer aos mandamentos (Jo 14:15), bem como realizaria o que o Pai deseja (Mt 7:21). Disse ainda que aquele que não desse fruto seria lançado no fogo (Mt 7: 19). Ya’akov (Tiago) escreveu que a fé sem obras é morta (Tg 2:17). Ou seja, é necessário algum tipo de obediência às regras morais da Torá.
A ideia de que a Lei (Torá) foi abolida difundiu-se por meio de Inácio de Antioquia, Marcião e todos os demais “Pais” da Igreja Católica, sendo incorporada por quase todos os protestantes clássicos e evangélicos, o que contraria o ensino de Yeshua no sentido de que não veio revogar a Torá (Mt 5:17-19).
Toma-se a liberdade para reproduzir mais uma vez os relatos históricos de que os netsarim (nazarenos) eram praticantes da Torá:
“Os Nazarenos … aceitam o Messias de tal maneira que eles não deixam de observar a Lei antiga [Torá].” (Jerônimo, Commentary on Isaiah, Is 8:14).
“Eles não têm ideias diferentes, mas confessam tudo exatamente como a Lei [Torá] proclama e na forma judaica…” (Epifânio de Salamina, Panarion 29).
Muitas pessoas não sabem que o próprio Martinho Lutero não era totalmente contrário à Torá, porquanto defendia a vigência das leis morais do Tanach (Primeiras Escrituras/“Antigo Testamento”). Certa feita, Lutero sofreu a acusação de desprezar os preceitos morais da Lei, ocasião em que afiançou: “Na verdade, eu muito me pergunto, como veio a ser imputado a mim que eu rejeitava a Lei ou Dez Mandamentos, se fazem parte de minhas próprias exposições (e de vários tipos) sobre os mandamentos, que também são diariamente pregados e utilizados em nossas Igrejas, para não falar da Confissão e Apologia, e outros livros nossos” (A Treatise against Antinomians, written in an Epistolary way).
Em sua obra “Introdução aos romanos”, Lutero declarou que a fé salvadora “não pode deixar de fazer boas obras constantemente… qualquer um que não faz boas obras dessa maneira é um descrente…Assim, é tão impossível separar a fé das obras como separar o calor da luz do fogo’” (An Introduction to St. Paul’s Letter to the Romans).
Comparando o pensamento dos netsarim (nazarenos) com Lutero, depreende-se que os primeiros defendiam a vigência total da Torá, enquanto Lutero advogou a subsistência apenas da lei moral (vigência parcial). O Mashiach foi contundente ao ressaltar, no famoso Sermão da Montanha, que absolutamente nada da Torá poderia ser retirado:
“Não pensem que vim abolir a Torá ou os Profetas. Não vim abolir, mas confirmar. Sim, é verdade! Digo a vocês: até que os céus e a terra passem, nem mesmo um yud ou um traço da Torá passará” (Matityahu/Mateus 5:17-18).
Logo, a extinção total ou parcial da Torá colide com a lição de Yeshua e, neste ponto, católicos e protestantes/evangélicos se igualam como duas faces da mesma moeda.